A PENÚRIA (Chapéus Há Muitos)

George Orwell escreveu um livro chamado “Down and Out in Paris and London” (em Português “Na Penúria em Paris e em Londres”) onde descreve, entre outras coisas, o ambiente infernal vivido nas cozinhas dos grandes hotéis parisienses no início do século XX. Orwell escreve a partir da sua própria experiência como “plongeur” (literalmente, um mergulhador, mas na realidade um lava-pratos sem escafandro, “wasted slave”) e compara este mergulho às profundezas dos restaurantes (o que não se vê, sempre o que não se vê) a uma descida aos infernos, onde se trabalha 14 horas por dia, sem pausas e sobretudo sem tempo para pensar, numa estrutura altamente hierarquizada, como um exército. Talvez isso explique, dizem-me, que no mundo da alta cozinha predominem os chefs (são 7 mulheres com três estrelas Michelin em 121 anos de prémio). No início do século XX como agora, aquilo é ambiente para homens. Não é o único.
Só que não.

Não haverá mulheres marciais? Onde foram parar as Amazonas? Será que as mulheres não sabem cozinhar? Ou são fracas a comandar? Indisciplinadas? Inconstantes?
Do alto dos seus chapéus, os cozinheiros não estão sozinhos dirigindo batalhões. De homens. Palpita-me. Estarei tomada pelo sexto sentido feminino?
Há uma espécie de oxímoro. As mulheres cozinham (e limpam, e lavam, e limpam narizes que pingam, e correm atrás de meias perdidas, sempre correram e hão de continuar a correr, e criam, e criam, elas criam desde que tenham “dinheiro e um quarto que seja seu”), mas é em casa, dentro de portas, passado o postigo, atrás da cortina. Estão fora da arena. Guardando tesouros inenarráveis, silenciosos. Tecendo-os e transmitindo-os dentro da escuridão luminosa do feminino.

Lá fora, o mundo empenha-se em empurrá-las para uma posição expectante. Tudo conspira, se intersecciona, para que sejam espectadoras. Esperançadas. Ah! Mas se elas estão preparadas biologicamente para esperar.
E algumas fazem-no, é verdade. Algumas esperam mesmo a vida toda. Outras – as que podem escolher- preferem não esperar. Nem filhos, nem coisa nenhuma.
É preciso estilhaçar, é claro.
Pegar no chapéu do chef, pulcro, altivo, com a mania das grandezas, e mostrar que é uma frágil coroa, transparente, de papel. Esvaziar a cartola branca. Sacudi-la.

Na minha cabeça, os hemisférios cruzam-se. Gosto de pensar nessa fluidez. Masculino, feminino. Com uma narina tapada, depois a outra, repasso a respiração por dentro. Voo nas páginas de Virginia Woolf, que em “Orlando” destapa essa mutabilidade de que somos feitas.

Depois abro os olhos.
Respiro fundo,
Reparo:
Nas artistas que se contam pelos dedos de duas benevolentes mãos: as Helenas, as Lourdes, para ficarmos só por Portugal. Na Josefa, que teve o descaramento de suplantar o pai. E não teve de se pôr em bicos de pés. Nem consta que usasse saltos. Na Judy Chicago, e nos seus one woman show.
Nas 57 mulheres que ganharam o Prémio Nobel em mais de 900 laureados.
Nos 92 anos que foram precisos para que uma mulher não branca vencesse um Óscar pela realização de uma longa metragem.
Em Mlle. Perriand – génia, génia – a quem Le Corbusier terá dito “Aqui não bordamos almofadas” quando ela lhe bateu à porta para conseguir um trabalho. E ela deu-lhe a outra orelha.
São muitas referências, é pouco espaço. São as excepções. Icebergues invertidos. A minha cabeça perdeu as amarras.
Não pode ser de outra forma.

Eu não vejo género, nem um género de profissão.
Eu desejaria que não houvesse necessidade de quotas, nem limites.
Nem profissões invisíveis, de nenhum género.
Desejaria todo o espaço e toda a liberdade.
Para as pessoas serem,
Abundantemente se expandirem
O seu talento, o seu trabalho, o seu fôlego.
Terem condições para isso.
Todo o género de condições.
Sem géneros de nenhum tipo,
Morfológicos mentais indefiníveis,
Em português,
Esta penúria toda,
Isto é um absurdo, é ridículo, inaceitável,
Ou será só um género?

Escrito por Madalena Galamba.

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