Escrito por: Rita Santos
Em 2018 convidaram-me a falar no Congresso dos Cozinheiros sobre um tema à minha escolha. Pensando no que interessaria a jovens cozinheiros, estudantes que tipicamente preenchem estas audiências, escolhi a Resiliência. Queria alertá-los para a diferença entre resistência e resiliência, porque tantas vezes vão atrás de um ideal romântico do cozinheiro-soldado, quem sabe miúdos apenas, explorados por empresas predadoras ou líderes descompensados que os encorajam no estereótipo de ‘aguentar’.
Usei a seguinte imagem: uma barra de aço é resistente, pois pode receber muita pressão. Mas em algum momento, a barra de aço vai partir. Por outro lado, uma bola de borracha é altamente resiliente, pois perante diferentes pressões, voltará à mesma forma.
Para sermos mais resilientes, precisamos estar plenamente conscientes do que é essencial para nos definir. A essência de uma pessoa, um restaurante ou uma cidade (um individuo ou um sistema, mais ou menos complexo) é a sua identidade. A identidade, disse-lhes eu, é o equivalente à forma da bola.
Depois, precisamos ser vulneráveis para absorver todo o impacto. Olhavam-me com toda a atenção. Vulnerabilidade é a exposição ao mundo exterior. Se lutarmos contra a pressão, estamos a resistir. Se abraçarmos os impactos, estamos a trabalhar em resiliência.
A resiliência é inteligente quando o ambiente está em constante mudança e o objetivo é a preservação. A natureza é resiliente, tem um instinto de vida que se ocupa dos espaços vazios.
Depois, veio a pandemia, e fiquei a pensar no que tinha dito apenas há um ano atrás. Houve quem tivesse ido ouvir as gravações dessa conferência, em busca de pistas. E eu aflita, a pensar se neste contexto a minha análise se mantinha. Será que tinha induzido uma comunidade (ou que fosse uma única pessoa, seria suficientemente grave) em erro?
“Nem todas as empresas necessitam da mesma escala para serem viáveis. Uma rede de telecomunicações por exemplo precisará de cobrir um extenso território, de investimentos avultados em tecnologia e infraestrutura. Já uma padaria, pode existir com um padeiro, mantendo a elevada qualidade de um produto feito à mão.”
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A questão da escala sempre me perturbou. De tal forma que está patente na assinatura do nosso projecto Comida Independente, ‘Grandes Produtos de Pequenos Produtores’.
Uma das primeiras coisas que aprendemos em Gestão de Empresas é que (na maioria das indústrias e até certo ponto) os custos são marginalmente decrescentes. Em Economia, há a Lei dos Rendimentos marginais decrescentes, considerando o longo prazo e aumentos de capacidade, mas deixemos essa análise técnica de lado. De forma muito simples, quando por cada unidade adicional produzida, os custos fixos se diluem por mais unidades, o custo total por unidade é menor.
Num sistema capitalista, em que as empresas procuram remunerar os seus investidores em mercados competitivos, há pressão para aumentar a rentabilidade e, portanto, a escala. Acrescenta-se a isto o poder negocial e maior escala se deseja.
Nem todas as empresas necessitam da mesma escala para serem viáveis. Uma rede de telecomunicações por exemplo precisará de cobrir um extenso território, de investimentos avultados em tecnologia e infraestrutura. Já uma padaria, pode existir com um padeiro, mantendo a elevada qualidade de um produto feito à mão. No meio rural, a extensão da propriedade depende do legado histórico das regiões, que por sua vez está intimamente ligado à topografia do terreno, ao acesso à água, à sua centralidade.
O problema é que a escala provoca a exploração intensiva de recursos naturais que levará à extinção da vida no planeta. Falo não só na lógica de mercado aplicada à terra produtiva e às pescas no mar, mas também no consumo de energia que nos dá conforto, viagens, entretenimento, serviços. A concentração do poder e a desigualdade material leva ainda ao surgimento de excluídos, que irão resistir (ou ignorar) estes mesmos problemas globais onde todos teríamos que colaborar.
A minha questão não é moral, é prática. Se a espécie humana não encontrar formas de ultrapassar a tentação da escala, pode estar em causa o seu futuro.
“Usei a seguinte imagem: uma barra de aço é resistente, pois pode receber muita pressão. Mas em algum momento, a barra de aço vai partir. Por outro lado, uma bola de borracha é altamente resiliente, pois perante diferentes pressões, voltará à mesma forma.”
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Na Comida Independente, temos mais perguntas do que respostas. Ao fim de 4 anos e de um percurso atribulado em pandemia, testámos vários caminhos sempre centrados numa ideia: a valorização dos produtos agrícolas que tratam a terra com consciência e se traduzem no prazer da comida e do vinho.
O Mercado de Produtores que iniciámos em 2020 na Praça de São Paulo dá-nos uma boa noção do que é a resiliência de um sistema perante a disrupção. Os produtores de especialidade, biológicos e hortas ‘boutique’ venderam os seus produtos diretamente às famílias, num momento em que com os restaurantes fechados não tinham outros canais disponíveis.
Mantém-se ainda à data que escrevo, apreciado pela frescura dos alimentos, exotismo das ostras e cogumelos, especialidade dos queijos e do pão, originalidade de muitos produtores convidados. Um mercado de produtores é das ideias mais antigas do mundo, fundadora de cidades e centro da vida medieval. É também das mais eficientes: os produtos consomem a mínima energia em transportes, armazenagem e embalagens, mantendo valor nutricional e qualidade, vendidos a preços justos.
Ao dividirmos o trabalho por todos, conseguimos um resultado coletivamente superior. Para isso precisámos de firmar um pacto: entre nós, com o estado e com o bairro. Um compromisso de nos encontrarmos todas as semanas para esta troca.
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A Comida Independente conseguiu adaptar-se a um mundo subitamente alterado. Para isso contribuiu um propósito bem definido e relações de confiança na comunidade.
Curiosamente, obtive também algumas pistas sobre a minha antiga questão da escala. Devemos cuidar para que, no que toca aos recursos naturais, possamos atuar a uma escala humana, onde colectivamente possamos ter mais impacto.
Foto de Miguel Manso
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