Acredito que o “Made in Portugal” dos últimos dez anos tem vivido de uma sobrevalorização da identidade nacional, tantas vezes assente em argumentos que podiam ter sido inspirados pela propaganda nacionalista dos anos de 1930. Há uma camada de vaidade nacionalista, herança profunda do século XX português, que nunca foi realmente questionada, que perpassa actualmente no discurso de tantos projectos nacionais.
Parece haver uma espécie de crença silenciosa de que tudo o que é feito em Portugal — seja na indústria ou nas oficinas de artesãos — é o melhor que há no mundo. Mas o argumento mais escorregadio é o de que como portugueses devemos ter “orgulho” em comprar objectos feitos em Portugal, por portugueses.
Se exceptuarmos os argumentos da pegada de carbono — comprar coisas produzidas localmente deverá ter uma pegada ambiental menor — não há nada que nos prenda a este argumento se não ideias bacocas sobre o que é “ser português” que, em vez de incluir, só exclui aqueles que não se encaixam nesta identidade “orgulhosa”.
Num momento histórico em que o questionamento sobre a ideia de nação tem sido largamente suplantado pela pertença cultural, quando vivemos uma crise de refugiados políticos sem precedentes (algo que, em Portugal, continua a ser visto como uma “migração” económica), a ideia de pertença nacional não faz nada por nós se não excluir, dividir, e decidir quem encaixa numa ideia-feita de portugalidade.
Talvez a reflexão sobre os símbolos da nacionalidade que continuam a ser reproduzidos ad aeternum desde o século passado, possa ser uma forma de percebermos esta obsessão com uma ideia de glória que instiga esse mesmo orgulho. E assumirmos que estes são exatamente os mesmos vocábulos repetidos pelos saudosistas do Estado Novo ou até pelos partidos nacionalistas de extrema-direita.
Eu acredito naquilo que é feito em Portugal, não por uma ideia de partilha de símbolos e memórias, mas porque há nesta sociedade, feita de pessoas de tantas origens, um talento no saber-fazer que é transversal a uma ideia de nacionalidade e muito mais patente no que cada um faz na sua cidade, na sua vila, na sua rua.
Acredito que uma defesa daquilo que é local tem de viver da micro-escala: uma oficina de esmaltagem única nos arredores de uma grande cidade, como o Porto; uma pequena fábrica de cerâmica em pleno Alentejo, uma antiga fábrica de lanifícios no sopé da Serra da Estrela. É no território e, portanto, nos lugares (e nas pessoas que os habitam), que temos de olhar para falar de “orgulho” em relação a uma ideia de país. Se não falamos de uma coisa vazia, sem relação possível com tod@s. Se para uns Portugal pode ser “bacalhau, pastel de nata, azulejo, bifana”, como ouvi de um grupo de turistas italianos por estes dias num autocarro no Porto, que enumeravam as palavras que tinham aprendido como se fossem crianças de escola — para outros serão outros grupos de palavras e de imagens, que lhes farão lembrar todas as coisas que são este país. Não podem haver respostas erradas neste jogo, porque ele é de tod@s @s que vivem e visitam um território.
Se as marcas portuguesas querem vender o valor do “Made in Portugal”, talvez devam começar precisamente pelas pessoas que os fazem. Quem são as fábricas, quem são os artesãos, quem são os designers, de quem são as mãos que fazem cada produto, as pessoas responsáveis por cada ideia?
Onde vivem, como vivem, se são bem pagas? Esse valor de manufatura local é realmente justo ou é só uma ideia da qual não podem mostrar os bastidores? Porque em verdade, o que interessa são sempre as pessoas: os objetos que fazemos e compramos são apenas uma outra forma de comunicação, uma forma de estarmos e sermos em comunidade, e isso é o maior valor que nos move, muito mais que uma ideia única acerca do país que somos.
Escrito por Filipa Cruz.
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